o acaso e buenos aires

Quatro meses depois, estou de volta. Puerto Madero me recebe de braços abertos e vento no rosto. De repente tudo parece voltar a fazer um mínimo de sentido – os dias ainda passam devagar, mas já não parecem sem propósito.

Ando pelas ruas da cidade que me acalma. O vento bagunça meu cabelo e eu me questiono em qual esquina ficou a minha felicidade. Buenos Aires me olha com a tristeza de uma mãe que sabe que nada pode fazer para aplacar o sofrimento de uma filha. A não ser deixar que sinta. Que doa. Até que pare de doer. E de sentir. Em um segundo, estou sozinha. Mas será que estou sozinha mesmo?

Após um reconhecimento inicial do local em que ficaria hospedada pelos próximos seis dias, sorrio ao perceber a força contida em seu nome. Hostel Malala, minha casa pelos próximos seis dias. Um lugar amplo, com um alto número de viajantes e duas cadelas extremamente amáveis para fazer as boas vindas.

Há certa magia em se visitar uma cidade pela segunda vez. Os pontos turísticos já não são a regra – até perceber que para mim, na verdade, nunca foram. Naquele momento, viro a esquina e presto atenção ao meu redor. Táxis pretos e amarelos passam como um borrão ao longo da Avenida Santa Fé. Pessoas vêm e vão enquanto estou parada assimilando todas as sensações e estímulos que passam por mim. Da cabeça aos pés. Pés que me trouxeram ao lugar em que estou. E que da mesma forma me impedem de chegar ao lugar que gostaria de ir. Uma guerra nessa cabeça que os guia – uma guerra em que a única vítima sou eu mesma.

Andando novamente por ruas já conhecidas em busca de qualquer sensação de pertencimento, tão necessária naquele momento. Os ares da Recoleta deram conta do recado, com suas ruas arborizadas e arquitetura tão característica. Me senti finalmente disposta a explorar um pouco mais, e assim o primeiro dia se passou — sem um roteiro definido, afinal é dessa maneira que se dão as melhores experiências.

Era um domingo, e me vi no metrô a caminho da Feria de San Telmo. No vagão, um recado: “Ni loca, ni perseguida, ni histérica. El acoso existe.” Sim, o assédio existe, e ali estava o grito mudo de uma cidade buscando se reinventar. É sempre tempo.

Logo as ruas de San Telmo tomaram toda a minha atenção, e é fácil entender porque ele é o bairro favorito de muitos que passam por aquela cidade. É um bairro tão declaradamente latino — há prédios, com sua arquitetura imponente, há gente, para todos os lados, há arte; sobretudo, há arte. A noite chegou e ficou por conta de Puerto Madero, outra vez Puerto Madero. “Music saved my life” era a frase que se lia ao entrar no bar escolhido para aquela ocasião, e não pude deixar de ficar feliz com aquele lembrete. A música, assim como qualquer forma de arte, realmente salva vidas.

Os dias passam e sinto pulsar dentro de mim a urgência do encontro. Encontro com aquela que fui há quatro meses e aquela que serei dali a mais quatro, ainda que elas nada saibam sobre quem sou aqui, agora. Que terá esse momento presente a ver com tantas versões de mim? Logo o penúltimo dia da viagem amanhece, e desço da cama superior da beliche com o cuidado de quem não quer cair.

Me visto para um clima tranquilo – já não faz tão frio quanto em setembro passado, mas tampouco o janeiro de Buenos Aires se revela tão quente quanto na cidade de onde vim. O vento volta a bater em meu rosto e as esquinas agora tão familiares revelam o acaso que é estar ali. A Starbucks mais próxima – dessa vez acertaram meu nome, veja só – é o palco para o breve café da manhã do dia que inicia.

O último dia de uma viagem que durou catorze. Entre muitos encontros, um desencontro e olhos que brilhavam por encantamento ou por lágrimas, voltei para o Uruguai e peguei o voo para o Brasil com a certeza de que sofri, sim; me machuquei, também; mas sobretudo vi renovar as esperanças de que existe muita vida lá fora, pronta para ser vivida. Percebi que viajar é um constante encontrar-se e despedir-se para sempre; no entanto, e felizmente para alguns de nós, para sempre nem sempre é tempo demais.

“Às vezes me pergunto se éramos nós, aquelas duas pessoas (…) duas pessoas que conversaram tão gentilmente, civilizadamente, no sol que se punha; que talvez tenham falado um pouco de tudo, e de nada; dois amáveis conversadores, dois jovens (…) a passeio; tão jovens, tão educados, tão distraídos, tão dispostos a fazer um do outro um juízo distraidamente benévolo; tão dispostos a despedir-se um do outro para sempre, naquele pôr do sol, naquela esquina de rua.” (Natalia Ginzburg em um ensaio do livro As pequenas virtudes)

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jennifer maccieira

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