“Fomos feitos para partir” é a frase que logo capta toda a minha atenção. Resolvo ir mais a fundo na história e logo me vejo completamente imersa em Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek.
Uma cidade afundando. Um lago que avança, pouco a pouco, e toma conta do que antes era a vida de pessoas. O que elas faziam enquanto aquilo acontecia? Uma tragédia anunciada, alguns poderiam dizer. Será mesmo? Quem tomaria para si a responsabilidade da verdade: é isto, está para acontecer, não há como voltar atrás?
A verdade é que esse tipo de tragédia, que acontece lentamente, é a mais traiçoeira. Apenas por um motivo: ninguém quer acreditar que o pior está acontecendo. No livro, os moradores de Alto do Oeste assistiam a água invadir suas casas e suas vidas enquanto trabalhavam, pagavam contas, iam ao colégio. Devagar. E em dias normais.
Esse livro conversou comigo de uma forma bem pessoal: vivo em Maceió, uma cidade que possui alguns bairros fantasmas após uma empresa de mineração explorar o solo de maneira indevida, fazendo com que eles começassem a afundar. Aos poucos, as pessoas que viviam ali viram suas casas começarem a rachar, o chão a tremer, até chegar ao momento inevitável em que teriam que abandoná-las. Deixar tudo para trás e recomeçar em outro lugar.
Na vida e na arte, não são apenas pessoas deixando imóveis e objetos para trás. São pessoas deixando suas histórias, afetos, memórias. Uma vida inteira. Esse sentimento é muito bem retratado por Aline Valek através de seus personagens. Um deles é Kênia, uma fotógrafa que retorna a Alto do Oeste, onde viveu a sua adolescência, depois que uma seca faz grande parte da cidade ressurgir. Aos poucos, antigos moradores fazem o mesmo, tentando recuperar um pouco da vida que tinham ali.
O livro vai e volta no tempo. Uma hora estamos no presente, enquanto Kênia reúne depoimentos de antigos e atuais moradores para um documentário, e no capítulo seguinte voltamos para o passado, com cenas cotidianas que contam a história que antecede a inundação. É interessante observar como cada personagem lida com esse marco em suas vidas – da nostalgia à indiferença. É quase impossível não se imaginar na mesma situação e como lidaríamos com ela.
Cidades afundam em dias normais foi um livro que me fez refletir. Sobre memórias pessoais e sobre memórias coletivas. Sobre como nossa bagagem latino-americana influencia diretamente na forma com que encaramos os obstáculos e a vida em si. Há um trecho em que isso fica em evidência e que me chamou muito a atenção: “(…) a experiência latino-americana de nem sequer conseguir curar as feridas profundas da colonização, porque as desgraças se sucediam e o povo não tinha tempo de lidar com todas elas.”
Por esse convite a reflexão é que acho tão importante ler mais livros nacionais e latinos. São histórias que conversam de uma maneira mais pessoal conosco e que gera quase sempre um sentimento de identificação, em maior ou menor proporção. São histórias reais, ainda que fictícias. São a nossa história, a nossa voz, e devemos prestigiá-las. Ouvi-las. E também contá-las.
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“Teria sido mais fácil se tivesse acontecido de uma vez, ela disse. Como nos filmes de ação. A vida pode ser meio decepcionante. Parece que nada acontece, até você reparar que acabou. Que chegou num ponto que não tem mais volta. Foi assim que começou pra mim, acho: quando vi que nada ia voltar a ser como antes.”
“A gente se acostuma, depois de um tempo. (…) Isso me assusta um pouco. Se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais.”
“Foi na repetição que afundaram. Devagar, feito em areia movediça; por isso, tão difícil de escapar.”
“Submersas por muito tempo, as memórias ganham a mesma consistência dos sonhos.”
“Que culpa eu tenho de ter perdido tanto? Que culpa eu tenho se minhas memórias são meio tristes? Vai ver minhas memórias doem porque crescer é doloroso.”
“Histórias de mulheres são histórias de vazios. Cheias de lacunas que só podem ser preenchidas com a imaginação.”
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país: brasil
4,5/5
lido em 24 de abril de 2022