o que fica depois que tudo passa

É tarde. É mais tarde do que se imagina e o silêncio invade cada milímetro da casa, da minha casa que sou eu mesma. O tempo medido em anos não parece mais suficiente, eu preciso dos instantes. Cada instante que passa é uma vitória conquistada e eu preciso delas. Deles. Dos instantes. 

Eu preciso deles porque o futuro não existe, estou aqui e agora e esse presente carrega o meu passado nos ombros, um fardo ora leve, ora pesado — mas sempre um fardo. Não sei mais o que é viver sem ele — o passado — e cada instante que passa é também uma batalha perdida e um peso a mais nos ombros do próximo momento presente. Esse momento presente.

Um paradoxo.

É difícil viver no depois do que já aconteceu. Mas que depois? O depois não existe, porque o depois é o futuro, e estou aqui e agora e esse presente já não sabe o que fazer com tantos instantes passados sendo adicionados ao seus ombros. Porque acontecer, como escreveu um dia desses a Ana Martins Marques, é irreversível.  Um copo de vidro não volta a ser o que era depois de encontrar o chão. 

E por acontecer ser irreversível, eu já não sei conviver com tantos acontecimentos que desaconteceram — desaconteceram porque agora são passado, mas aconteceram porque um dia foram presente. É complexo assim mesmo, porque a vida é complexa e esse poderia ser mais um texto lamentando esse fato, mas esse texto é outra coisa. 

Esse é um texto sobre os copos de vidro. E o que resta deles depois dos instantes em que encontraram o chão. 

É tarde. É mais tarde do que se imagina e nada pode ser feito para quebrar o silêncio que invade casa milímetro da minha casa que sou eu mesma. Estou diante dos cacos de vidro espalhados pela cozinha dessa casa e não sei por qual deles começar a recolher. O jornal está em cima da mesa e na pressa de buscá-lo piso no pedaço mais próximo. 

O que vejo escorre pelos meus dedos e invadem o já povoado chão da cozinha. O sangue é a prova de que estou viva e ainda existo aqui dentro, em mim. Observo mais de perto aquele caco de vidro brilhante e agora tomado pelo vermelho — qual será a parte que lhe cabe no copo que sou eu? 

Essas são as feridas do passado, mas ele não é feito apenas delas e é necessário cada vez mais olhar por esse lado. Olhar para dentro e saber que sou muito mais do que apenas uma coleção de momentos ruins e pessoas que foram embora. Porque os cacos de vidro ferem, mas eles também brilham.

É necessário cada vez mais olhar para dentro e saber que permaneci, contra todas as expectativas não fui embora, ainda estou aqui. O que aconteceu no passado, embora pese sobre os meus ombros e faça parte do que sou, não define a minha essência e as cicatrizes são a prova de que estou viva e ainda existo aqui dentro, em mim.

Ser alguém sensível ao mundo ao redor requer coragem para ser. Ser alguém sensível ao mundo ao redor requer a consciência de que não há lugar em que se possa estar plenamente em casa porque cada pedaço de mundo por onde se passou modificou de alguma forma a sua essência e agora faz parte de quem se é.

Não tenho casa.

E por não ter casa, estou sempre à deriva.

Por não ter casa, moro em mim.

O que vem depois me assusta. Me assusta porque não posso escrever sobre o que vem depois. O que vem depois ainda não aconteceu – como é possível então jogar os sentimentos em forma de palavras na mesa e organizá-las de modo a fazerem sentido? Escrever sempre me ajudou a enxergar caminhos que antes estavam camuflados pelo desespero. Desespero. Escrever é o meu mais completo ato desesperado.

Observo o chão da cozinha dessa casa que sou eu mesma e o que vejo são pequenos pedaços de passado. Hoje um copo se quebrou e amanhã eu vou acordar e ele continuará quebrado – porque acontecer, como já sabemos, é irreversível. E o que resta é pegar o jornal, recolher os cacos de vidro e recomeçar a escrever.

Sobre o depois. Contrariando todas as expectativas e o saber impossível, escrever sobre o depois. Sobre o que fica depois que tudo passa.

Porque eu tenho quebrado copos. 

É o que tenho feito. 

(texto inspirado no poema tenho quebrado copos, escrito pela ana martins marques e publicado no livro o livro das semelhanças)

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jennifer maccieira

escrito por

jennifer

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