sentimentos parisienses

Já ouvi dizer que Paris é um sonho — eu digo que Paris é real. Não apenas porque estive lá; mas porque, assim como tudo na vida, ela não é perfeita. A cidade exalava perfeição, era verdade, mas uma vez me disseram que eu exalava confiança, então sabemos que demonstrar não é necessariamente ser. Me perguntei o que diria aquela pessoa se me visse tremendo ao embarcar. Sorri — é bom saber que, ao menos no imaginário alheio, posso ser um pouco como a dona de mim mesma.

Ao contrário do que diziam as previsões — meteorológicas e sociais — Paris me recebeu com sol e afeto. Nada do estereótipo do francês mal educado: o sorriso amarelo indicava que tão frágil quanto a minha confiança era o meu francês, e a maioria deles logo embalava um inglês esforçado. Dei sorte — não fosse pelo fato de que talvez eu não devesse acreditar muito nesse papo de sorte. Talvez a simpatia francesa esteja ali, meio escondida, longe dos olhares exigentes de alguns turistas que viajam mas não saem de si.

Felizmente, não tenho olhos — nem coração — exigentes. “Where are you from? Turkey?” perguntou o garçom peculiar de um café próximo ao Louvre. Fujam de restaurantes próximos a pontos turísticos, todos falavam, mas a fome desconhece localização geográfica. Achei curioso estar na França e ser confundida com turca, uma vez que já estive no Uruguai e fui confundida com francesa. Terei de ir à Turquia ver o que me espera. “Brazil”, respondemos, ao que ele logo emendou um “Ah, obrigado!”. Mais uma vez, sorri. Sorrir, naquele momento, era fácil.

A cidade em que você e sua irmã comentam casualmente uma com a outra: vamos nessa direção ver o que tem? E naquela direção, virando a esquina, o que tinha era a Torre Eiffel. A cidade em que você não entende o idioma e sorri, sente o vento frio te congelar e sorri, compra um sanduíche ruim e sorri. Paris, descobri, é assim — você sorri mesmo em situações aparentemente reversas. A cidade em que a sorte, a sorte mesmo, é simplesmente estar ali — não fosse pelo fato de que, vocês já sabem, eu não devesse acreditar muito nesse papo de sorte.

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Finalmente compreendi a dimensão do elogio na letra da música do Baco quando ela diz “mais bonito que os corredores do Louvre”. O museu que não roubou meu coração, mas me deixou sem ação e sem palavras: passei a visita falando pouco e fotografando ainda menos. Às vezes a gente só aceita a grandeza de determinados lugares — eu poderia ter dito que sou pequena comparada a ele, mas pensei melhor e não disse. Afinal, assim como o Museu do Louvre é um mundo, eu também consigo ser. Aceitar a grandeza desses determinados lugares sem se curvar a eles.

Caminhar pelas ruas de Paris me fez pensar muito em quem eu sou: pequena, grande? Merecedora de estar ali? Minha psicóloga diz que nada é por acaso. Susan, me perdoe, não sei se concordo — às vezes sim, às vezes não. Às vezes acho que a vida é, sim, um grande acaso, outras vezes tenho certeza de que o universo dá um jeito e o que tem de acontecer, acontece. Às vezes você tem que atravessar um oceano pra se dar conta de que tudo que hoje é, apenas é porque algo veio antes. E antes e antes e antes. A vida é um eterno continuar — por acaso ou talvez não.

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Baby, is that lost on you? Era noite em pleno Trocadéro, e eu ouvia a moça tocar e cantar para todos ali que, assim como eu, aguardavam o relógio marcar a próxima hora cheia para ver a Torre Eiffel brilhar. Fiquei surpresa com a sua resistência ao frio e me perguntava como conseguia tocar o violão tão bem com as mãos nuas em um frio de 10 graus — eu mesma mal conseguia usar o celular sem sentir os dedos enrijecidos. Me rendi às luvas e ela, entre uma música e outra, ao cigarro. Cada um lida com a temperatura à sua maneira.

Eu não sabia como havia ido parar ali. Como era possível estar naquela cidade. Pegar o metrô. Agradecer falando Merci e não Obrigada. Ouvir uma moça cantar numa noite de feriado francês, em frente à torre, enquanto eu abria o google e digitava um trecho da música para descobrir o nome.

Eu não sabia como havia ido parar ali, não fosse pelo fato de que eu talvez não esteja sendo completamente sincera. Estar naquela cidade exigia consciência dos meus caminhos para chegar até lá — e por caminhos não quero dizer apenas esperas em aeroportos e dez horas e meia de voo. Quero dizer escolhas, anseios e renúncias.

Eu não sabia como havia ido parar ali porque às vezes é mais fácil mentir para mim mesma e acreditar em sorte ou acaso do que lidar com as consequências das próprias escolhas. Tenho essa mania de não querer saber. Talvez porque ter conhecimento e ter a consciência de que se tem seja matéria para as pessoas confiantes. Não passei na fila da confiança ao nascer, então tenho que encontrá-la pelo caminho. Talvez o mundo seja a minha caça ao tesouro, afinal.

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Attention à la marche en descendant du train. O trem balançava levemente ao transitar entre as estações e o aviso sonoro para ter cuidado ao descer se agarrava à minha mente a cada parada. O vai e vem de pessoas das mais variadas idades e características me davam a noção de estar em uma das principais capitais do mundo — uma noção que foi tomando seu lugar aos poucos. Lentamente.

O vento frio me recebia sempre que colocava os pés para fora do vagão. Cada estação me trazia uma sensação diferente — algumas bem movimentadas, outras servindo de um bom cenário para filmes de terror. Algumas realmente bonitas, outras apenas bem cuidadas (ou nem isso). O vai e vem de pessoas das mais variadas idades e características me fazia pensar em seus destinos e o que as haviam levado até ali. Um pensamento comum para uma estrangeira que está apenas de passagem, acho. É fácil se perder dentro das possibilidades quando você não precisa realmente se preocupar com elas.

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Andando naquela cidade, observando seus jardins, contemplando as margens do Sena e comprando os postais mais bonitos que já vi, pensava sobre tudo que se perdeu nas escolhas que, por medo, não fiz. Subindo escadas — em Paris, elas são muitas — no metrô, em Montmartre, no Arco do Triunfo, sentia no peito a sensação de estar viva.

O repouso é confortável, mas não faz o coração bater mais forte: a vida mora é no movimento. Eu fingia não saber como havia ido parar ali porque é mais fácil acreditar em sorte ou acaso, é mais fácil acreditar que não sou corajosa ou confiante o suficiente para escolher atravessar um oceano e encarar o desconhecido. Para viver é preciso coragem — para realizar sonhos também. E, apesar de não ser fácil, descobri ser possível.

A gente teima em querer o fácil. Eu acho que devíamos focar em conseguir o possível.

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A seriedade europeia que em nada combinava com o riso frouxo e piadas ruins das brasileiras que se encantavam por cada esquina. É um misto de sensações estar em um lugar como Paris — muito consciente de suas imperfeições e problemas, sim, mas ainda assim encantada.

Ver um pouco mais do mundo sempre foi uma das minhas vontades desde que me entendo por gente. O sentimento de virar uma esquina diferente e saber que ainda sou eu, ainda estou ali, que sei existir nos mais diversos lugares é algo que sempre achei difícil descrever. Mas que bom que as palavras não pertecem somente a mim: elas estão por aí, disponíveis pra quem quiser se atrever a fazer uso delas.

Em um de seus poemas, intitulado “entre muitos”, Wislawa Szymborska traduziu muito bem em palavras algo que eu só pensava: a nossa capacidade de se espantar como parte crucial de quem somos. Não normalizar, não se acostumar, não dar como certo. Seja na esquina de casa ou do outro lado do mundo. Seja na Praia da Ponta Verde ou nas margens do Sena. Porque afinal, viver e perceber que se vive é mesmo uma coisa absurda.

“(…) poderia ser eu mesma — mas sem o espanto,

e isso significaria

alguém totalmente diferente.”

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jennifer maccieira

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jennifer

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