O dia está chuvoso e caminho sob uma areia semi molhada. O tênis branco, agora já não tão branco, machuca meus pés e faz de cada passo um pequeno esforço — não que eu precisasse de mais um. Respiro devagar, sentindo aquela dor física, e sigo em frente.
Gostaria de poder fazer o mesmo com a outra dor. A do lado de dentro, a que não deixa as feridas expostas — gostaria de poder senti-la respirando devagar e seguindo em frente. Sem maiores danos, sem grandes dramas. Mas a verdade é que não podemos ignorar a dor, seja ela externa ou interna: uma hora a conta chega.
Está ventando, e faz um pouco de frio. Perco a noção do tempo e me pergunto que horas são. Olho o céu. Tons de rosa e laranja ocupam toda a sua extensão, acima do mar acinzentado e entre os prédios de Montevideo. Essas cores me dizem que é a hora do sol se pôr — isto é, se houvesse um sol. Não há, mas os dias nublados também têm a sua beleza.
Lá, ao longe, a uma quantidade de metros que jamais aprendi a precisar, estão minhas amigas. Alterno o meu tempo ali sozinha entre observar o céu e os pequenos detalhes da natureza no meu caminho — encontro uma daquelas folhas de outono, amarelada pelo tempo e deslocada em meio à areia da praia. Como ela foi parar ali? É verão. Olho ao redor, é a única. Sorrio levemente. Como eu fui parar ali?
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Meus pés doem. Não é uma novidade naquela viagem, e me faz pensar que preciso escolher com mais cuidado o que vou colocar na mochila. É o mesmo tênis branco de dias atrás, a dor é a mesma de dias atrás. As dores.
Estou a caminho da Casapueblo. A pé — eu poderia dizer que parece uma boa ideia até ser posta em prática, mas não parece uma boa ideia desde o princípio. Ainda mais se não escolheu sapatos adequados. Aparentemente, eu havia sido a única com tal falta de sorte.
Lá, ao longe, a uma quantidade de metros que jamais aprendi a precisar, estão minhas amigas. Alterno meu tempo ali sozinha entre tirar fotos do caminho para mandar para minha irmã e torcer para que não chova. Olho o céu. Acho que vai chover.
Caminho o mais rápido que posso, e o mais rápido que posso ainda é devagar. Mas devagar também se chega, e me vejo enfim em meu — nosso? — destino final. Respiro devagar, sentindo aquela dor, mas não consigo seguir em frente. Tiro os sapatos e percebo que estou sangrando. Você não se lembra? Não podemos ignorar a dor.
Encosto em um dos muitos veículos estacionados por ali. A água do mar alguns metros abaixo se move violentamente contra as pedras. É um cenário bonito — bonito e melancólico. Sinto que quase poderia sorrir com a ironia. Eu já disse que é verão, vejam bem. Quase poderia sorrir, mas não sorrio. Escuto um rapaz passar e comentar com a pessoa ao lado: la niña está llorando.
La niña, enfim percebo… bom, la niña sou eu.
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O clima de verão finalmente se faz presente na ensolarada Piriápolis. Caminho pela orla com a câmera — e algumas lembrancinhas — a tiracolo. A energia ali presente me acalma um pouco. Pode ser o sol, penso. É o sol.
Sempre gostei de dias nublados. No entanto, tenho a dignidade de reconhecer o quanto eles podem contribuir com um humor decaído. Pela vida. Pelas circunstâncias. Pelas circunstâncias da vida. Um dia nublado parece reafirmar um coração nublado. Por mais que chova lá fora, é sempre bom manter o peito aquecido.
Fotografo o mar. O mar que tem a cor mais azul que eu já vi — tão diferente de Montevideo e Punta del Este. Não é de admirar que aquela cidade, tão pequenina, seja facilmente a mais movimentada dentre as que já passei.
Estou sozinha. Dessa vez, realmente sozinha. Tento me lembrar o caminho de volta para o hostel sem precisar consultar o gps. Não quero distrações, quero apenas estar ali. Observar. Entender um pouco aquele país que está tão perto, e ao mesmo tempo tão longe.
O interior uruguaio pulsa. Vibra. Quero a todo custo capturar aquela força, aquela energia, aquele sol. O sol. Quero a todo custo capturar o sol, agarrá-lo com as mãos — e no entanto o vejo escapar com facilidade por entre os dedos.
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Hostal de los poetas. Foi de lá que saí e é para lá que voltarei daqui a algumas horas. Sorrio ao pensar em seu nome. Colonia del Sacramento é, de fato, pura poesia. As ruas largas, as casas charmosas, o Rio de la Prata, o milkshake sabor céu azul.
Ando pelas ruas sentindo o vento no rosto. A temperatura finalmente faz jus à estação e me permite usar apenas um short, uma blusa e uma sandália. Sem tênis branco dessa vez, afinal às vezes é preciso sangrar para perceber que algumas dores nós não precisamos sentir.
Olho a minha volta, o sol está se pondo em meio ao rio. Algumas pessoas param para assistir. Outras para fotografar. Eu faço um pouco dos dois.
Lá do outro lado está a Argentina, para onde irei assim que o sol nascer novamente. Olho para os meus pés, para as folhas voando, para o chão do Uruguai, e sei que é para onde eu voltarei dali a seis dias.
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Choro silenciosamente na escuridão do ônibus naquela viagem noturna. Não quero incomodar a pessoa sentada ao meu lado. Uma pessoa que não conheço — afinal, outra vez estou sozinha.
A estrada passa como um borrão através da janela e os ares de Montevideo ficam cada vez mais próximos. Sinto que deixo um pouco de mim para trás. Sinto que deixo muito de mim para trás. Não consigo decidir quanto de mim foi deixada para trás.